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Butão: o último reino budista dos Himalayas

  • Foto do escritor: tiffanihr
    tiffanihr
  • 24 de ago.
  • 8 min de leitura

Há muito tempo, no século VIII, os vales do Butão eram habitados por espíritos ferozes e divindades ancestrais que resistiam aos ensinamentos do Buda. Vindo da longínqua terra de Oddiyana, surgiu o magnífico Padmasambhava, também conhecido como Guru Rinpoche, trajando as vestes de um iogue errante. Sua aura irradiava serenidade, mas dentro dele ardia o fogo inabalável e incorruptível da compaixão e da sabedoria.


Quando chegou, os céus escureceram enquanto os espíritos locais se agitavam, pressentindo a presença profunda do Guru. Com um sorriso e um olhar penetrante, ele subiu uma montanha rochosa, com o coração afinado aos ritmos da terra e de todos os elementos da natureza. A cada passo, entoava mantras sagrados que enviavam ondas de luz pelos vales, acalmando os ventos turbulentos. Ele não destruiu os espíritos malignos, mas os domou — tinha a maestria de despertar a bondade até nos corações mais sombrios.


As histórias de Guru Rinpoche ecoam por todas as partes do Reino do Butão. Ele é considerado o segundo Buda, responsável por trazer o Budismo Vajrayana a esta terra, abrindo um intenso intercâmbio de conhecimento entre a Índia, o Tibete e o Butão. Mas o Butão jamais foi conquistado por forças externas, e sua cultura e seus costumes foram preservados em forma vívida e pura. O atual rei, Sua Majestade Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, incentiva seu povo a vestir roupas tradicionais em eventos oficiais, a pintar suas casas com símbolos budistas auspiciosos e a ornamentar as intrincadas janelas de madeira com camadas de blocos talhados e coloridos.



Esta foi a segunda vez que trouxe um grupo ao Butão, depois de muitos anos conduzindo viagens na Índia. Os países vizinhos são dramaticamente diferentes. O que salta aos olhos de imediato é o ecossistema limpo e bem preservado. Vir da Índia para o Butão cria um contraste intenso; gosto de pensar que a Índia é uma mãe amorosa, porém colérica, enquanto o Butão é uma mãe suave, mas misteriosa. Posso me perder nas florestas densas do Butão, caminhando por muitas horas e chegando a templos pouco conhecidos, atravessando cachoeiras intocadas, andando sob árvores imensas enfeitadas de musgo, encontrando cavernas e penhascos com sinais mágicos autoemanados e mantras esculpidos na rocha por peregrinos locais.


Desta vez vim ao Butão para compreender melhor o papel do feminino no Budismo Tibetano — sejam dakinis, yidams ou consortes humanas — sem interpretações masculinas. Aproximei-me da fonte desses símbolos primordiais e percebi sua realidade em mim, como a energia feminina misteriosa que oculta e revela segredos que os homens muitas vezes não estão prontos, ou não conseguem, vivenciar. De fato, em cada templo que entrávamos, ouvíamos apenas histórias mágicas que encobriam um sentido mais profundo, a menos que conseguíssemos aquietar a mente e deslizar para um outro tempo-espaço, no qual nossa imaginação e experiência pudessem se expandir sem limites conceituais impostos. As narrativas fantásticas nos convidavam a suspender a mente racional, mas também nos aprisionavam em crenças herdadas e restritivas. É uma linha tênue entre estar aberto à magia e submeter-se à superstição.


A magia nunca é literal; é um modo de ver que exige tanto abertura e generosidade quanto discernimento, para não cair na adoração de novos deuses fabricados. A verdadeira magia é habitar um território indeterminado, como se fosse entre o estado de vigília e o sonho. Não se pode prová-la, nem negá-la. Ao me atentar para as lacunas da minha própria percepção enquanto escutava as narrativas tradicionais, procuro não trazer julgamento nem comparação, mas permanecer aberto como uma criança em deslumbramento.


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Como quando ouvi a história do Templo Dzongdrakha, não muito longe da cidade de Paro, erguido em um penhasco vertical muito semelhante ao famoso Ninho do Tigre, contada nas palavras de Dorji Wangchuk:

“No século XV, um iogue tibetano chamado Drupthop Gyempo Dorji seguiu seu mestre em busca de um lugar chamado Zhungphug, no Butão. Quando chegou ao que hoje é Wochu, apareceu um chacal para lhe mostrar o caminho até o penhasco rochoso. A lenda diz que o Guru surgiu em pessoa e lhe entregou uma espada de cristal, com a qual golpeou a face da rocha. Então, revelaram-se uma stupa de cristal e três relíquias em forma de ovo de Sangye Yoesung (Buda Kashyapa). Duas dessas relíquias voaram: uma foi levada pelas divindades, outra pelos seres subterrâneos; a que restou, ele preservou construindo um chorten (stupa) para guardá-la. Essa stupa treme nos dias auspiciosos. Curiosamente, ela só foi erguida pela metade: acredita-se que o terço superior esteja no reino dos deuses, enquanto a base repousa nas profundezas subterrâneas dos nagas. A lenda diz que um dia ela voará para longe ou então afundará ali.”


Visitamos a stupa no penhasco de Dzongdrakha, lar de uma das cinco irmãs espíritos-da-montanha, veneradas por trazer prosperidade e longevidade. No dia em que fomos, ainda podíamos vê-la, mas operários já levantavam paredes ao seu redor para cobri-la completamente. A razão era que milagres haviam sido atribuídos à stupa especial, e as pessoas começaram a arrancar pedaços dela, acreditando que possuía poderes de cura. Mas, assim fazendo, quase a levaram à ruína! Tivemos a sorte de vê-la antes de ser encoberta, e não apenas a stupa, mas também outras relíquias — entre elas uma estátua de Guru Rinpoche que, segundo dizem, falou sobre o lugar exato onde queria ser colocada.


Para acessar a sabedoria mágica, a pergunta não deve ser: “É verdade?” ou “Ela realmente falou?”. Quando ouvi essa história, minha mente voltou à infância, quando meus pais costumavam me ler e me contar histórias mágicas. Eu não questionava se eram reais ou não — apenas me deixava maravilhar e embarcava na viagem montada num unicórnio que podia voar e me levar para longe dos monstros escuros que me aterrorizavam. Outros seres míticos me conduziam a outros lugares, onde meninas viviam dentro de flores semelhantes a mandalas. E, ao imaginar todas essas coisas fantásticas, eu adormecia em paz, feliz por fazer parte de um mundo tão rico e interessante. Algo em mim sabia que aquelas histórias não eram literais, mas, ao mesmo tempo, elas edificavam meu mundo interior, onde diferentes humores, sentimentos e pensamentos se agitavam.


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Hoje sei que os pensamentos são energia, e que a energia é o que constrói o mundo material que chamamos de “realidade”. A forma como alimentamos nossos pensamentos também molda a pessoa que somos no mundo. Pensamentos são as sementes de tudo aquilo que se manifesta no “mundo real”.


A história mágica, transformadora e poderosa mais forte que consigo imaginar agora é a ideia de Deus. Talvez nunca tenhamos encontrado “Ele” ou “Ela”, mas a crença em Deus moveu o mundo por milhares de anos, unindo comunidades de fé e também provocando guerras terríveis e divisivas. A energia que essa crença gera deu à humanidade o poder de construir templos, catedrais, igrejas, mesquitas e a maior parte dos grandes monumentos do mundo. Mas onde está esse Deus, senão dentro da nossa imaginação mais profunda? Ouso me perguntar se nós mesmos não seríamos a imaginação de algum deus.


E aqui estou no Butão, ouvindo diariamente histórias mágicas de iogues voadores, mulheres metamórficas, um ogro do tamanho do país, e até de um “louco divino” que realizava milagres com o seu falo. O templo dedicado a ele é Chimi Lhakhang, em Punakha, onde ainda hoje as pessoas vão em busca de rituais de fertilidade. Muitos (ouvi dizer que a maioria) relatam ter filhos geralmente um ano depois da visita. Será que o templo realmente possui poderes mágicos, ou seria a energia criada pela crença coletiva da comunidade que gera uma consciência fértil à qual se pode, de algum modo, acessar?


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Se analisarmos nossos desejos por coisas como carros, casas, roupas, carreiras, relacionamentos, perceberemos que o que buscamos de fato vai além do objeto em si. Queremos a emoção, a magia. Em certo sentido, não é o amante que desejamos, mas o amor; não é o carro, mas a potência que ele carrega; não são as roupas, mas o desejo de sermos vistos. Mas e se pudéssemos alcançar essas experiências sem tanto esforço em perseguir coisas, desenvolvendo nossos sentidos para experimentar a verdadeira magia? Em tantos casos, conseguimos o que queremos, mas ainda assim não sentimos alegria (ou talvez apenas por um instante). Isso não acontece porque o objeto não tenha nada a oferecer, mas porque nosso terceiro olho não está aberto — o olho capaz de ver a beleza e a magia.

Criar um mundo interior rico, imaginativo e livre é o que torna qualquer objeto, qualquer trabalho, qualquer pessoa prazerosa e significativa. Em outras palavras, uma vida bela não depende de onde você está ou do que você possui, mas de como você percebe e enxerga as coisas. Como no aforismo atribuído a Platão — ou na peça Love’s Labours Lost (1598) de Shakespeare:

“A beleza está nos olhos de quem vê.”

E Shakespeare escreveu:

“Senhor Boyet, minha beleza, embora simples,Não precisa do artifício pintado de teu louvor:A beleza é comprada pelo juízo do olhar,Não pelo discurso vil das línguas de mercadores.”

Ao buscar a sabedoria das dakinis no Butão, percebi que se trata mais de fundir-se com o mistério dela, de encontrá-la dentro de nós mesmos — a chave mágica da imaginação ilimitada, dos conceitos não definidos, de não acreditar literalmente e também não descrer. Ela habita os intervalos: entre as linhas, entre as respirações, entre as árvores e os rios, entre duas palavras ditas, entre um meio sorriso e um olhar. Lembro-me da tradução de Lex Hixon da Prajnaparamita Sutra, que descreve o “corpo de sabedoria” dela como: inencontrável, impensável, indizível, indecifrável, indefinível, inalcançável, não formulável, inconcebível, incomparável, ilocalizável, inisolável, inabordável, imutável, inatingível… Caminhando na natureza selvagem, senti sua presença sem ver, sem provar, sem tocar — mas, de alguma forma, experienciando-a em total mistério.

Há um belo trecho do Dao De Jing, que parece muito apropriado aqui:

“Olhe, e não pode ser visto.Escute, e não pode ser ouvido.Toque, e não pode ser apreendido.Acima, não é claro.Abaixo, não é escuro.Sem costura, inominável, retorna ao reino do nada. Forma que contém todas as formas, imagem sem imagem, sutil, além de toda concepção. Aproxime-se, e não há início; siga-o, e não há fim. Não se pode conhecê-lo, mas pode-se ser ele, em paz com a própria vida. Basta perceber de onde você vem: isso é a essência da sabedoria.”

Ao chegar ao topo, depois de algumas horas de caminhada, alcançamos o Templo de Chompoo, o Templo da Dakini Flutuante, onde há uma estátua da dakini Vajravahari que, segundo se diz, foi descoberta numa caverna atrás da cachoeira, do tamanho de um gato. Mas, uma vez colocada no templo, a estátua cresceu até o tamanho de uma pessoa alta, enquanto a base de seu pé não toca o chão, dando-lhe a aparência de levitar. Observei atentamente seu pé — de fato, não tocava o solo. Permiti-me ser transportado de volta à minha infância, sem pensar se era real ou irreal. Simplesmente contemplei com assombro e permaneci naquele sentimento. E foi mágico. Tais sentimentos fazem meu coração levitar. Com os olhos úmidos e um sorriso suave, curvei-me diante de Vajravahari.

Como comentou Sua Santidade Sakya Trizin:

“O principal método utilizado no Vajrayana é deixar de ver as coisas como ordinárias. Portanto, você deve ver todas essas coisas como sabedoria transcendental, ver a si mesmo na forma de uma divindade, todos os sons como mantra, e cada pensamento que surge como conhecimento transcendental. Embora, no início, você esteja apenas visualizando, apenas imaginando, gradualmente o apego à visão comum se desfaz, e você fortalece seu caminho na tradição Vajrayana.”

  • Tiffani Gyatso - Outubro, 2024


 
 
 

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